20 novembro 2012

Sobre quem vamos falar no dia da Consciência Negra?

Pretinha de Neve e os Sete Gigantes
texto e ilustrações: Rubem Filho
editora: Paulinas

Imagino que os que me conhecem há mais tempo estranhem que uma versão politicamente correta de um clássico infantil chegue aqui ao Cachinhos. Quando a onda do "politicamente correto" chegou até mim, rapidamente me posicionei contra ela. Porque... ora, porque era chata demais. Não poder cantar as cantigas de roda do jeito que eu, e várias gerações antes de mim, cantaram, é chato demais! Não poder usar uma expressão, e ainda substituí-la por outra que “assassina o português", mais que chato é constrangedor!

Pior é quando o "politicamente correto" chega à literatura infantil. Mexer nas histórias clássicas, transformar lobo mau em lobo bom, acabar conflitos e tornar princesas e madrastas amigas, dentre outras coisas, torna tudo descaracterizado e... chato. Além disso, a infância precisa ter acesso a conflitos, desafios e seres temíveis de uma posição segura para compreender melhor sua realidade e o mundo em que vive, e assim amadurecer. Um final feliz depois de todas as intempéries da história é libertador não apenas para as crianças.

Mas enquanto criticava e acusava de chata tanta patrulha, a danada da minha cabeça insistia em me fazer pensar (que chato!). Fui refletindo sobre a importância de se parar para reavaliar o "modus operandi" para que o mundo e nossas sociedades possam evoluir. Bom, eu só não queria ser A chata que faz isso, mas comecei a admirar bastante quem tem peito para ser tão chato assim - recentemente encontrei nesse texto uma ilustração do que minha cabeça fervilhava.

E foi então que cheguei ao maravilhoso e perturbador texto de Ana Maria Gonçalves sobre a polêmica em torno de Monteiro Lobato e do seu livro Caçadas de Pedrinho. Na época eu estava investigando para tentar entender melhor o caso: em resumo, estava sendo questionada a adequação à legislação antirracista deste livro, escolhido para ser distribuído nas escolas públicas de Ensino Fundamental, e caso não houvesse adequação, solicitado que o mesmo fosse recolhido*. Grande polêmica se deu a partir daí. Anônimos e famosos posicionavam-se contra o absurdo de querer censurar o maior escritor para crianças do Brasil, e chamar de racista um homem que viveu em uma época em que chamar um negro de urubu era algo absolutamente aceitável. Afinal, quantos “homens e mulheres de bem” haviam tido acesso a este livro na infância?

Mas o texto de Ana Maria Gonçalves foi além da falácia corriqueira, e me fez pela primeira vez ver realmente a questão do “politicamente correto” com outros olhos. O questionamento inquieto que ela lança é: afinal de contas, de quem estamos falando??? Trata-se de uma caça às bruxas em cima de Monteiro Lobato? Não, não é esta a questão. Lobato era indiscutivelmente racista e defensor da eugenia, e digo isso não baseada em suas obras, mas em trechos de cartas suas trocadas dentre outros com o médico Renato Kehl que no Brasil propagava a superioridade racial (um trechinho para ilustrar: “um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar... porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva” – trecho de carta a Arthur Neiva retirado daqui). Mas, lamento, não é de Lobato que devemos falar. Sua obra é de qualidade indiscutível, assim como seu talento literário e o legado que ele deixou para a literatura infantil brasileira. Mesmo sabendo que na mesma época em que ele viveu, viveram homens que lutaram pela igualdade racial, não é dele que esta polêmica trata. Questionar o uso de Caçadas de Pedrinho por alunos da nossa rede pública de ensino fundamental não é um simples ato de afronta ao racista Monteiro Lobato.

Tampouco esta polêmica trata de mim ou de você, caro leitor (a não ser que alguma criança negra estudante de escola pública esteja lendo este texto – o que me deixaria orgulhosíssima). Lamento, “homens e mulheres de bem”, independente da cor da sua pele, não é de você que devemos falar. Quem questionou a adequação do livro à legislação antirracial falava das milhares de crianças negras brasileiras, estudantes de escolas públicas, tendo que conviver na sala de aula com expressões racistas. Recomendo que leiam na íntegra o texto de Ana Maria, mas vou copiar um trecho deste aqui por minha absoluta incapacidade de reproduzir bem, de outra forma, suas palavras:

“Peço agora que você faça um exercício: imagine uma criança na sala de aula das escolas públicas de ensino médio e fundamental no Brasil. Negra. Sei que não deve ser fácil colocar-se sob a pele de uma criança negra, por isso penso em alternativas. Tente se colocar sob a pele de uma criança judia numa sala de aula na Alemanha dos anos 30 e ouça, por exemplo, comentários preconceituosos em relação aos judeus... Ou então, ponha-se no lugar de uma criança com necessidades especiais e ouça comentários alusivos ao seu "defeito"... Talvez agora você já consiga sentir na pele o que significa ser essa criança negra e perceber a carga histórica dessas palavras sendo arrastada desde séculos passados: "macaca de carvão", "carne preta" ou "urubu fedorento", tudo lá, em Caçadas de Pedrinho, onde "negra" também é vocativo. Sim, sei que "não se fala mais assim", que "os tempos eram outros". Mas sim, também sei que as palavras andam cheias de significados, impregnadas das maldades que já cometeram, como lâminas que conservam o corte por estarem sempre ali, arrancando casca sobre casca de uma ferida que nunca acaba de cicatrizar.

Fique um pouco de tempo lá, no lugar dessa criança, e tente entender como ela se sente. Herdeira dessa ferida da qual ela vai ter que aprender a tomar conta e passar adiante, como antes tinham feito seus pais, avós, bisavós e tataravós, de quem ela também herdou os lábios grossos, o cabelo crespo, o nariz achatado, a pele escura.”

Percebem o quanto é fácil e vago falar do racismo enquanto alguém que não sofre nem dissemina o racismo? Como dizer se “macaca de carvão” é ou não uma expressão adequada para crianças se você não é uma criança negra em uma sala de aula provavelmente cheia de crianças brancas? Enquanto não aprendermos a nos colocar no lugar do outro, enquanto não sairmos da posição de centro das atenções, muito pouco irá mudar. E enquanto isso, e considerando que trata-se de crianças, não seria mais prudente pecar pelo zelo?

Poderia falar muito mais sobre isso, mas prefiro contar um fato pessoal para ilustrar a questão: há alguns meses li uma notícia na internet que dizia que o SBT tinha sido obrigado pelo Ministério Público a trocar a expressão “seu negro” por “seu sujo” usada pela personagem Maria Joaquina em relação à personagem Cirilo, na novela Carrossel. Lembro de ter visto uma cena em que a expressão foi usada e termos comentado, eu e meu marido, como “seu sujo” parecia muito mais depreciativo a um negro, e que seria preferível ser usado simplesmente negro. Uns dois meses depois minha filha chegou da escola perguntando, visivelmente surpresa, se nós sabíamos o porquê de Maria Joaquina maltratar Cirilo. Meio assustados dissemos que não e ela respondeu “porque ele é negro, mamãe! Porque ele é NEGRO, você acredita?!?!”. Para nossa surpresa, nem ela nem os seus coleguinhas de sala, mesmo depois de assistir episódios da trama, tinham percebido que o tratamento que o menino negro recebia da menina branca referia-se a cor da sua pele. Foi preciso um adulto chamar a atenção de uma das crianças, e esta a atenção das demais, para que eles percebessem "o óbvio". Se a expressão “seu negro” estivesse sendo usada não teriam eles internalizado a questão sozinhos e muito mais rápido?

Diferente do que possa parecer, o preconceito não é inerente aos humanos. Preconceito se aprende, se ensina – em frases despretensiosas, em olhares maldosos, em gestos não contidos... e não sejamos ingênuos, está em mim, em você, inclusive na criança que já teve contato com ele. Precisamos de uma revolução muito maior e dolorosa para construir um mundo mais igualitário do que simplesmente parar de trabalhar no dia 20 de novembro...

Em relação a Pretinha de Neve e os Sete Gigantes, trata-se de uma divertida reconstrução do clássico infantil. A cor da pele da protagonista e a estatura dos seus sete amigos não é a única alteração em relação ao texto original. Esta versão acontece na África, no alto do Kilimanjaro, onde também neva. Não há madrasta, mas padrasto, que apesar de ausente e cruel, não tem poderes maléficos, nem quer matar a enteada. O espelho mágico foi substituído por um caldeirão que também fala, e Pretinha vai para a floresta sozinha e por sua vontade – e sem o consentimento de adultos. O grande vilão da história é mesmo a pouca atenção que os pais dão à menina, sempre envolvidos que estão com suas próprias atividades – quer conflito mais atual que este?


* Recentemente um requerimento similar foi encaminhado a CGU em relação ao livro Negrinha, também de Monteiro Lobato, comprado para distribuição nas escolas públicas de Ensino Médio (também pelo PNBE – Programa Nacional de Bibliotecas nas Escolas) - notícia aqui. Para conhecer o parecer do MEC sobre Caçadas de Pedrinho veja aqui. Mais informações aqui e aqui.

17 novembro 2012

E quem tem medo do Rato Mau???

O filho do Grúfalo
texto: Júlia 
ilustrações: Axel Scheffr
editora: Brinque-Book

Postagem rapidinha só para falar que O Filho do Grúfalo é mesmo uma excelente continuação de O Grúfalo. Sim, achei importante dizer, já que continuações de livros infantis (e livros de outras categorias, e filmes, e peças teatrais, e discos...) nem sempre conseguem acompanhar o talento e bom gosto do primeiro. Mais que isso, queria dizer que trata-se realmente de uma continuação, e não apenas de uma outra história sobre o mesmo tema. Desta vez, o filho do Grúfalo decide aventurar-se na floresta mesmo contra a proibição de seu pai, que teme o terrível Rato Mau, que ele conheceu anos atrás. Da mesma forma que o ratinho no primeiro livro criou o temível Grúfalo, é o Grúfalo quem agora cria o temível Rato Mau, baseado nas suas lembranças - lembranças cheias de medo e temor. E o pequeno Grúfalo, cheio de coragem, parte em busca do tal Rato Mau. Tudo bem, o ratinho é esperto, e mesmo não sendo terrível nem temível, mais uma vez consegue enganar um Grúfalo.

Chegou pela ciranda de livros da escola da filha há algumas semanas, e hoje o Disney Júnior passou os dois filmes que recontam os dois livros. Delícia!

06 novembro 2012

Perdidos em Paris


Paris y es-tu?
textos e ilustrações: Masumi
editora: Parigramme

Ando tão enrolada ultimamente que fico assustada quando percebo que deixei de fazer coisas importantes. Como diz uma amiga, estou no modo “gincana” – o problema é que estou nele há tempo demais... preciso mesmo desacelerar e deixar de lado algumas coisas (Foco! Foco!). Por isso não sei como ficará o Cachinhos até o final do ano, talvez com posts mais esporádicos. Mas a boa notícia é que tenho novidades para 2013! Não será nada grandioso, mas finalmente vou fazer a personalização que este blog há tanto tempo merece. A primeira parte já está pronta, e garanto que está linda demais. Mas os outros detalhes só ficarão prontos em janeiro mesmo. Enquanto isso, vamos nos encontrando nesse espaço ainda impessoal, mas que já nos acolheu tantas vezes, não é? Estou bastante empolgada com as ideias que tenho tido para o Cachinhos, e acho que vocês irão gostar bastante.

Bom, mas uma das coisas importantes que deixei de fazer foi trazer aqui os outros livros que adquiri na viagem à Europa. Trouxe dois dos livros de Portugal e o da Eslovênia, prometi trazer os outros... e nada. Esqueci completamente. Mas na semana passada fiz um e-mail para uma amiga, que planeja uma ida à Paris com as filhas, com umas dicas do que funcionou lá com a minha filha, e só então lembrei deste livro tão divertido que a pequena adora folhear na hora de dormir (principalmente quando não quer dormir).



Nós compramos Paris y es-tu? na lojinha de souvenir da lindíssima Saint Chapelle, e foi sua lembrança de Paris – em cada cidade que íamos ela tinha direito de escolher uma lembrança para levar. Estava à venda também sua versão em inglês, mas é claro que preferimos em francês. A proposta do livro é super interessante: um tour por Paris a procura do pequeno parisiense Théo, que está à procura de seu cachorrinho Potchi, que por sua vez persegue um balão amarelo de gás. Todas as páginas são ilustradas com cenas de Paris, como a Tour Eiffel et Champs de Mars, Montmartre e Parvis de Notre Dame, e no meio das ilustrações estão Théo, com seu lencinho vermelho amarrado no pescoço, Potchi e seu balãozinho amarelo, e você deve encontrá-los, no melhor estilo Onde está Wally? Além disso, para cada paisagem há um pequeno texto falando sobre o ponto turístico e revelando detalhes da capital francesa. Um deleite para apaixonados por Paris de qualquer idade, e para apaixonados por ilustrações também – é fascinante ficar observando as microcenas que compõem o todo de cada página.



Minha pequena adora este livro, e sempre me pede para lê-lo (!?!?!). E eu atendo, embora nós duas saibamos que tudo que faço é desenrolar um “embromation” com as poucas palavras que conheço em francês. Tudo bem, procurar Théo, Potchi e o balão é mesmo seu maior interesse. Além do mais, é muito bom para mim exercitar um pouco a capacidade do “faz de conta” que misteriosamente perdemos ao longo da vida...



PS1: é possível comprar Paris y es-tu? pela Fnac: aqui
PS2: estou tentando incluir fotos do interior dos livros nos posts, mas peço paciência com essa pessoa que ainda não descobriu uma forma razoável de fazer isto...