Menina bonita do laço de fita
texto: Ana Maria Machado
ilustrações: Claudius
editora: Ática
Para quem não sabe, a minha é uma família colorida. Isso na prática, porque na teoria, usando como referência o censo demográfico do IBGE, estamos os três na enigmática categoria dos pardos. Em relação ao tom de pele, sou o que se costuma chamar de morena clara, com olhos e cabelos escuros, e como se sabe, muitos cachos. Meu marido, seguindo a mesma linha de raciocínio, é moreno escuro, com alguns traços afros: cabelo de carapinha, nariz largo, lábios grossos. Nossa filha puxou o tom de pele do pai, com traços mais misturados, como lábios mais finos e cachos bem definidos, embora menos largos que os meus.
Quando ela ainda era um bebê, eu comecei a imaginar que em um determinado momento de sua vida ela começaria a fazer questionamentos relacionados a sua cor, e foi nessa época que me deparei, em uma livraria, com esse livro que já é quase um clássico da literatura brasileira: Menina bonita do laço de fita, da maravilhosa Ana Maria Machado. Naquela primeira leitura tive certeza que, quando o momento das perguntas chegasse, eu o leria para minha filha. Mas o fato é que o tempo foi passando, e nenhum questionamento surgiu. Mais que isso, a pequena demonstrava muita consciência em relação a sua cor, e tranqüilidade com nossas diferenças, tanto em conversas quanto em desenhos. Eu comecei a imaginar que ela era mesmo muito bem resolvida, e tais questionamentos nunca chegariam... mas chegaram, explicitamente na forma de uma insatisfação: “eu não quero ser pretinha, eu quero ser branquinha como você, mamãe”. Assim mesmo, direta, sem rodeios, como acontece com as crianças que não têm medo de mostrar seus sentimentos. E continuou “vou me pintar de branco, misturar tinta e passar com pincel”. Eu disse que não podemos mudar nossa cor, que tinta não muda quem somos, que sua cor é linda, como a do papai. Mas ela falou mais: “mas eu não gosto de ser pretinha, e não quero ter a cor do papai”. Disse a ela que tudo bem ela querer ser diferente, mas deixei claro que nem ela nem ninguém poderia mudar de cor (espero que ela demore a saber de Michael Jackson rsrs).
Tentei ser o mais tranqüila e clara possível nessa conversa, mas não posso negar as apreensões que me rondaram. Meus medos, anseios e culpas maternas ficaram querendo encontrar uma brechinha para chegar, e é maravilhoso saber que também nesses momentos os livros infantis estão a postos para nos ajudar. Assim, no dia seguinte a uma segunda rodada de questionamentos, iniciada novamente por ela, dei-lhe o livro. Ela que adora presentes e adora livros, ficou eufórica e pediu que eu o lesse imediatamente. Deitamos em minha cama e fui lendo a história de um coelhinho branquinho, branquinho, que admira muito sua vizinha, uma menina de pele escura e lustrosa como o pelo de uma pantera negra na chuva. Ele a considera a pessoa mais linda que já vira, e deseja ter uma filhinha pretinha como ela. Depois de várias tentativas de ficar preto(inclusive pintar-se de tinta preta), ele percebe que não poderia mudar sua cor, e a única forma de ter uma filha pretinha seria casar-se com uma coelhinha pretinha.
Um pouco depois da leitura, quando estávamos juntas na cozinha, falei para minha filha imitando o coelhinho da história: “menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo para ser tão pretinha?” e ela, decidida, respondeu: “eu não sou a menina bonita do laço de fita!”. Reformulei a pergunta e a repeti, começando dessa vez com o seu nome, e ela respondeu “é porque meu pai é pretinho”. Nossa, quanto alívio com essa resposta... Sei que os questionamentos continuarão, a insatisfação também, mas percebi que ela começou a entender suas origens, e tenho certeza que um dia terá muito orgulho delas, mesmo que prefira ter isso ou aquilo diferente (quem não prefere?). Bom, fato é que já relemos o livro várias vezes, e há meses novos questionamentos não surgem.
Para mim é um consolo saber que posso contar com bons livros como aliados. Falando nisso, desde então tenho me sentido muito próxima de Ana Maria Machado, como se formássemos uma parceria rsrs Delírios secretos que os livros infantis nos proporcionam.