Há alguns anos, fiz uma viagem à Irecê, no semiárido baiano, como parte de uma disciplina do mestrado.
Em dupla deveríamos escolher uma propriedade de agricultura familiar,
entrevistar seus proprietários e desenvolver uma análise de viabilidade das
mesmas. Eu e um colega escolhemos a propriedade de um senhorzinho que era uma
simpatia, e foi mesmo uma ótima escolha. Logo no primeiro dia, estávamos os
três em frente à casa da família, onde havia, além do banco de madeira em que sentamos,
uma árvore e sob esta, uma montanha de ramas de cenoura. Assim como a maioria
dos agricultores da redondeza, ele se dedicava ao plantio de cenoura e
beterraba. Lá pelas tantas, o colega perguntou o que ele faria com tanta rama. Ele
respondeu: “ah, usamos pra alimentar os animais. Vou distribuir com meus
vizinhos” O colega falou, meio assustado com tal resposta, que ele deveria
vender as ramas - já que todos usavam poderia ser uma boa fonte de renda extra.
O velhinho riu gostoso e respondeu: “Meu filho, eu não vendo porque semana
passada foi o meu vizinho quem fez sua colheita e dividiu suas ramas comigo e
com os outros. E na semana que vem será o outro vizinho que fará o mesmo.
Assim, os animais de todos têm o que comer”.
Nunca esqueci esse episódio, que
provavelmente me trouxe a principal lição de toda a viagem. O contei algumas
vezes em sala de aula, quando era professora, ao falar do surgimento do modo de
produção capitalista. Sempre achei essa uma ótima forma de mostrar como o modo
de pensar capitalista não é único, nem mesmo nos dias de hoje. Já tinha tempo
que não lembrava dessa história, mas a proximidade do dia das crianças me fez
relembrá-la.
Todo ano é a mesma coisa. Antes mesmo de
começar outubro, o comércio e a publicidade voltados ao consumo infantil estão
em polvorosa. Os canais de TV, abertos e fechados, desfilam propagandas
com toda sorte de produtos para “alegrar o dia da garotada”. As lojas de venda on line não param de enviar e-mails com oferta
de produtos e tentadoras promoções. Outdoors, plotagens em ônibus, publicidades
em revistas, redes sociais e até em escolas (oi?) fazem questão de lembrar o
quanto um presente no dia das crianças é importante para a felicidade do
pequeno – UM presente para quem compra, porque é claro que a criança deve
receber presente dos pais, dos tios, dindos, avós, amigos, etc. De que outra
forma ela terá certeza do quanto é amada??? E no meio de tudo isso estão as
crianças, bombardeadas e alucinadas com as promessas de felicidade e atenção
que os famosos “presentes de dia das crianças” trarão. Pffff... Que desânimo
isso me dá.
O desânimo é principalmente
porque a maioria dos adultos está tão absorto por esta história que realmente
acredita que será o presente no dia das crianças que fará a alegria do seu
filho, e como todo pai/mãe deseja a alegria de seu filho, o tal presente
torna-se, evidentemente, imprescindível. Não estou levantando aqui uma bandeira
contra “presentes de dia das crianças”, mas trazendo a reflexão do que realmente
isso significa. Será mesmo que para o dia dedicado às nossas crianças tornar-se
especial e para que eles se sintam amados é preciso que ganhem presentes, de preferência
caros e rapidamente “esquecíveis” como prega a mídia? Acho que nossa sociedade
há muito perdeu a noção do que é realmente importante nas relações pessoais, e
junto perdeu o bom senso em relação ao como e quanto consumir.
Desde o ano passado estou
envolvida com dois movimentos que são muito importantes para mim: o Infância Livre do Consumismo (veja aqui
e aqui), que este ano está com uma campanha belíssima em prol de um dia das
crianças sem consumismo (ilustrada pela queridíssima Lu Azevedo) e a Feira de Troca de Brinquedos e Livros deSalvador – que terá sua terceira edição no próximo sábado, 05 de outubro,
no Palacete das Artes no bairro da Graça. Esses movimentos me trouxeram
excelentes reflexões sobre o tema, em especial a feira de troca, que me
proporcionou vivenciar uma experiência de dia das crianças não consumista.
A ideia é tão simples quanto genial: as crianças e suas família se reúnem no local escolhido e levam aqueles brinquedos e livros que, embora não estejam mais em uso, possam ser usados por outras crianças. Chegando à feira, escolhem um espaço e expõem o que levaram, analisando também o que o interessa entre o exposto por outras crianças. Quando uma criança encontra um objeto que deseja obter, procura seu atual dono com o que tem a oferecer e a negociação se inicia - e nessa etapa é muito importante que a intervenção adulta seja mínima. O importante é que cada criança atribua aos objetos um valor simbólico, não monetário - assim, um brinquedo eletrônico caro pode ser trocado por um quebra-cabeça e deixar duas crianças felizes (eu vi isso acontecer). Se a troca agradar ambos os lados, se estabelece. Se não, cada um terá que procurar outra negociação.
Lembro de quando organizamos a primeira feira e do medo de como se dariam estas negociações, qual seria o nível de frustração das crianças com as trocas não estabelecidas. O aprendizado foi enorme, de forma resumida a experiência mostrou que:
- como em outros aspectos, subestimamos a capacidade de compreensão das crianças. Embora tenha havido um ou outro episódio de frustração manifestada por choro e revolta, foram raríssimos os casos de crianças que voltaram para casa insatisfeitas. Na grande maioria dos casos, em algum momento da feira, elas encontraram outra oportunidade de troca que se efetivou e saíram satisfeitíssimas;
- os maiores conflitos ocorreram quando o adulto interferiu mais do que deveria (colocando seus interesses pessoais acima dos da criança). Não tenho dúvida, a maior dificuldade de internalizar a proposta da feira é do adulto, que tende muitas vezes em comparar monetariamente os objetos;
- a experiência traz para as crianças lições preciosíssimas: desapego, capacidade de negociação e de lidar com a frustração, e principalmente: que a diversão de um brinquedo não está no fato dele ser novo, ou caro, ou badalado, mas no sentido que você atribui a ele!
- o brinquedo não é necessário para fazer as crianças se divertirem e interagirem (bom, muitas vezes até atrapalha a interação). Várias atividades bacanas são marcadas junto com a feira, e muitas vezes o que vemos são brinquedos largados de lado e crianças sendo felizes juntas!
Ah, e sabe o que foi mais legal? Repliquei a experiência na minha família, e já fizemos duas feiras de troca entre primos. Marcamos numa pracinha, levamos comidinhas para um piquenique, depois fazemos as trocas das crianças e no final a troca dos adultos - pois é, adultos também trocam! Já troquei vestido, bolsa, brinco, colar, maquiagem rsrsrs E quem não tem algo que comprou, usou e enjoou, ou até enjoou antes de usar? Garanto que é uma experiência única, muito rica e muito divertida.
O dia das crianças pode sim ser comemorado com alegria e diversão sem precisar da interferência do consumismo. Pense nisso. Amanhã volto com a segunda parte do post e um livro maravilhoso.