Mamãe Zangada
texto e ilustrações: Jutta Bauer
editora: Cosac Naify
Eu sempre tenho uma lista
considerável de livros “a comprar”, quase sempre uma lista crescente, já que
minha restrição orçamentária não permite que os títulos saiam da lista com a
mesma freqüência que entram. A maioria dos livros que trago aqui ficou em
quarentena nessa tal listagem, alguns por mais outros por menos tempo, mas com
o livro de hoje foi diferente. É que Mamãe Zangada não chegou a fazer parte da
lista, embora eu o conheça há bastante tempo.
Eu não lembro exatamente onde
soube de sua existência, mas sei que foi com a resenha que
Lu Conti fez que
tratei de conhecê-lo. E ele foi perturbador naquele momento. Como apresentá-lo
a minha filha, então com uns 2 aninhos? E aí preciso dizer o quanto gosto dos
livros de Jutta Bauer, ilustradora e escritora alemã, que produz livros assim,
perturbadores, reflexivos, questionadores. Daquele jeito que eu gosto: traços
simples, poucas palavras e muitos significados. Achei melhor esquecer a
história do dia que mamãe pingüim grita tanto com seu filhote que o pequeno se
despedaça. O livro fala do impacto que as “explosões maternas” causam nas
crianças. O volume da voz, a acidez das palavras, a irracionalidade das
acusações e a agressão das ameaças. O pequeno se despedaça, e na metáfora produzida
por Jutta, o bico do pingüim filho vai parar nas montanhas, suas asas na selva, seu corpo afunda no mar, e suas patas chegam ao deserto, correndo sem rumo. Ele não pode falar, nem gritar, nem voar... Mas a mamãe procura o filho em todos os lugares,
até encontrar, juntar e costurar, ela própria,
cada um dos pedacinho separado... para então lhe pedir desculpas.
Naquele momento eu não conseguia
me imaginar entregando aquele livro à minha filha, assumindo as limitações e
falhas maternas, até porque eu me considerava uma mãe bastante paciente e
controlada... E o tempo passou, e a filha cresceu, e a mãe foi se envolvendo
com muita coisa extra-maternidade e os dilemas mãe e filha foram mudando. E eu me vi
cada dia trabalhando mais, me estressando mais, me ausentando mais, fisicamente
ou não, do seu dia a dia. E fui ficando menos paciente e menos controlada. Todo
mãe explode vez ou outra – ou deveria, afinal o que não se extravasa vira
doença, e não há nada mais triste do que uma mãe ausente por motivos assim – mas eu sentia que estava explodindo demais, e as explosões
estavam pesadas demais, e isso me incomodava enormemente.
Resolvi parar e reavaliar tudo.
Meu trabalho me absorve bastante, mas eu gosto de trabalhar, então eu precisava arrumar
as coisas para que cada uma ocupe o espaço que lhe cabe. Fiz uns ajustes nos
horários e estabeleci algumas coisas: meus finais de semana são para mim e
minha família, reduzi consideravelmente meu tempo na internet e as noites são
novamente para olhar suas atividades da escola, fazer uma comidinha gostosa
para ela, acompanhar suas brincadeiras e colocá-la para dormir. Parece bobagem,
mas as coisas estavam realmente emboladas: a noite eu ficava na internet e não
acompanhava o que ela fazia, e ela acabava ficando na televisão até muito
tarde, e dava trabalho para dormir, e muito mais para acordar. E eu? Explodia.
E depois morria de culpa. O tal ciclo vicioso em ação. Ainda quero
mudar algumas coisas, mas dá para perceber que consegui dar uma quebrada no tal
ciclo. Chego em casa mais tranqüila, coloco ela para fazer a atividade e acompanho tudo enquanto
preparo algo para comer - um balcão liga a cozinha à sala - comemos e ficamos juntas até a hora de colocá-la para dormir, cedo. Com isso ela tem acordado cedo e nossos conflitos foram
reduzidos. Ahhh, mas eu ainda estouro de vez em quando, e ela não se cansa de
me testar. Tudo bem, é importante para nós duas que os conflitos aconteçam,
desde que estejam envoltos em muito respeito e amor.
E foi nesse momento que lembrei
novamente de Mamãe Zangada, e pude vê-lo com outros olhos. O livro explicita
algo que às vezes queremos deixar esquecido: o impacto devastador que nossas
palavras, gestos, atos impulsivos podem ter sobre nossos filhos. Faz a mãe
pensar, refletir, reavaliar, e isso é sempre bom. Mas faz bem para os filhos
também. Entreguei-o a minha pequena numa forma silenciosa de dizer: “mamãe nem
sempre é legal com você, às vezes é injusta e te machuca. Eu sei disso e estou
tentando mudar, mas eu nunca vou te deixar despedaçada, eu vou sempre juntar e costurar seus pedaços para te deixar inteira novamente, como você
merece.” Não é fácil, mas criar filhos não é mesmo algo fácil de ser feito. E
desta arte, eu sou eterna aprendiz.