Julieta de bicicleta
texto: Liana Leão
ilustração: Márcia Széliga
editora: Cortez
Na escola da minha filha, sexta-feira é dia de ciranda do livro. As crianças escolhem um livro para ficar no final de semana e devem, na segunda-feira, devolvê-lo com um desenho inspirado nele. No início do ano é solicitado no material escolar três livros próprios a idade, de escolha livre, com base em uma lista de sugestões de editoras – quase nunca seguida. São esses livros que vão para a dita ciranda, e tenho que confessar que raramente me encanto com algum... para ser bem educada. Resumos mal feitos de contos infantis, livros cheios de recursos visuais e vazios de conteúdo, e algumas vezes me passando a impressão de que o único critério para a escolha foi o preço. Já tive algumas - poucas - agradáveis surpresas, mas nenhuma igual a de algumas semanas, quando chegou na mochila Julieta de bicicleta, das paranaenses Liana Leão e Márcia Széliga. E a pequena veio empolgadíssima com ele, mostrando que já sabe reconhecer quando tem algo realmente bom nas mãos.
Julieta é uma menina muito, muito meticulosa, que gosta de fazer tudo sempre i-gual-zi-nho. A hora de acordar, o número de passos até o banheiro, a ordem dos movimentos de sua escova de dente, e por aí vai. Além disso, ela gosta de tudo muito perfeito, da sua roupa à sua postura, e só sabe andar em linha reta. Isso mesmo, uma pedra no caminho, que atrapalhe seu andar linear, pode transformar-se em um tormento para Julieta, afinal, ela não está acostumada a imprevistos e a ter que tomar decisões rápidas. Com tudo aparentemente sob controle, ela parece se sentir segura e feliz, vivendo sem surpresas. Até que no seu aniversário a menina ganha uma bicicleta, e vai bicicletar no parque. Tudo ia bem até que ela se depara com uma curva muito encurvada, e paralisa, invadida por seus temores.
Adorei a forma inteligente e direta como a autora abordou o medo do novo, do desconhecido. Cheio de exageros, o texto ficou leve e divertido, mas faz questão de tratar a criança com o respeito devido, como alguém capaz de entender e superar seus desafios. Aqui em casa, estamos vivendo uma fase de muitos medos povoando o dia a dia da Cachinhos. Fico com o coração doído quando vejo a minha menina ansiosa e com o coração acelerado diante de situações e pessoas desconhecidas... sobretudo porque me faz lembrar a menina que fui um dia. Por experiência própria sei do grande desafio que é vencer os medos e ansiedades da vida, e da importância de fazê-lo. Quem hoje me vê falante (até demais) e encarando desafios talvez não suspeite do longo trajeto que segui, e do coração acelerado que vez ou outra tenho que disfarçar. Por isso, mesmo com o coração doído, aguardo, paciente e ao seu lado, que ela também descubra seus próprios caminhos de superação.
E daí que o livro me fez conhecer um pouco mais de Liana Leão, que é doutora em letras, professora da UFPR, e tem outros livros publicados, aparentemente com a mesma competência ao abordar temas às vezes difíceis e relacionados aos desafios do crescer. Estou pesquisando com empolgação, e os resultados serão divididos aqui, claro. Mas o livro me reservava ainda uma surpresa: um prefácio escrito por Bárbara Heliodora, que definiu bem o cuidado e o respeito da autora com os pequenos leitores e faz uma boa reflexão sobre o processo de aprendizagem e formação infantil. Leia abaixo:
Isaac Azimov disse uma vez que não sabia qual o mistério que levava o processo de educação a sufocar a curiosidade natural das crianças, e é contra isso que se coloca Liana Leão quando escreve seus livros. Para ela, na formação da criança, não se pode tratá-la como um receptáculo vazio a ser entulhado de informações, é necessário desafiá-la, estimular sua curiosidade e seu raciocínio.
No pré-primário, como no 3o grau, não há nada pior do que transformar o que deve ser aprendido em inimigo, que pode tomar a forma de um dragão só vencido por heróis, ou em risco do fracasso na elaboração de uma tese. Há qualquer coisa de errado em qualquer processo de educação que não comporte o bom humor e o riso.
Há muito que aprender em Julieta de Bicicleta, principalmente a necessidade de ter, ao mesmo tempo, rumo e flexibilidade, convicção e curiosidade. Acreditar que a criança tem sua personalidade e merece ser respeitada para poder crescer tanto em conhecimento (e não decoreba) quanto em auto-confiança (e não capricho gratuito) parece ser a estrela-guia de Liana, em suas lindas incursões pelo universo infantil, onde tudo que tem para dar é trocado pelo prazer das descobertas de quem está vendo as coisas pela primeira vez, sem ares de superioridade ou de concessão.
Julieta de bicicleta é um prazer para todos nós, e convida-nos a entrar nesse doce processo de formação infantil.
Dra. Barbara Heliodora – crítica de teatro, professora de drama, tradutora e maior especialista brasileira em Shakespeare
No pré-primário, como no 3o grau, não há nada pior do que transformar o que deve ser aprendido em inimigo, que pode tomar a forma de um dragão só vencido por heróis, ou em risco do fracasso na elaboração de uma tese. Há qualquer coisa de errado em qualquer processo de educação que não comporte o bom humor e o riso.
Há muito que aprender em Julieta de Bicicleta, principalmente a necessidade de ter, ao mesmo tempo, rumo e flexibilidade, convicção e curiosidade. Acreditar que a criança tem sua personalidade e merece ser respeitada para poder crescer tanto em conhecimento (e não decoreba) quanto em auto-confiança (e não capricho gratuito) parece ser a estrela-guia de Liana, em suas lindas incursões pelo universo infantil, onde tudo que tem para dar é trocado pelo prazer das descobertas de quem está vendo as coisas pela primeira vez, sem ares de superioridade ou de concessão.
Julieta de bicicleta é um prazer para todos nós, e convida-nos a entrar nesse doce processo de formação infantil.
Dra. Barbara Heliodora – crítica de teatro, professora de drama, tradutora e maior especialista brasileira em Shakespeare
Não poderia terminar esse post sem falar sobre as ilustrações de Márcia Széliga, que criou uma Julieta ruiva, de grandes óculos redondos, e tão entediante quanto a personagem merece. Para quebrar esse clima, figuras divertidíssimas, no melhor estilo nonsense, estão espalhadas por todo o livro, como uma ratinha fazendo pipocas que viram o contorno do balão dos pensamentos de Julieta, uma tartaruga de patins, um caracol de skate, peixes voadores com bexigas ou balões de ar quente, e um lindo canguru ciclista, que tem o corpo pintado de flores, e solta os passarinhos de uma gaiola enquanto pedala .