O livro de hoje tornou-se imediatamente
um dos favoritos de Letícia logo que chegou às suas mãos. E ela pediu para relê-lo
infinitas vezes. E é claro, tem uma história por trás.
Ela, que frequenta creche desde
os quatro meses e meio, desde que fez 1 aninho teve aulas de capoeira (sim, na
Bahia é assim). Aos 2 anos começou a pedir incessantemente para ter aulas de
balé, influenciada pela coleguinhas que saiam da escola de coque, tutu e sapatilha
para as tais aulas. Não começou logo porque ainda não tinha idade, depois foi o
nosso bolso o impeditivo, até que aos 4 anos começou as aulas e as frequentou
até final do ano passado, quando ela mesma pediu para sair. Aí veio a escola
nova, que inclui natação no horário normal da aula – e ela adora. E no
contraturno, me foi dito durante a pré-matrícula, ela teria direito a mais um
esporte a escolher: futsal ou ginástica rítmica (GR). Perguntei a ela o que
preferia e a resposta foi imediata: futsal! E na semana seguinte: GR. E na
seguinte a seguinte: futsal. Ainda era agosto, então decidimos que, quando as
aulas começassem, ela faria uma aula de cada e decidiria.
Entretanto, na matrícula, em
dezembro, fui informada por uma funcionária da escola que não havia o que
escolher: menino faz futsal, menina faz GR. Exatamente assim. Fiquei revoltada, acima de tudo porque, a escola que escolhi com tanto cuidado e por
tantos meses, tinha um posicionamento claramente sexista em relação aos
esportes – aliás, até onde esse posicionamento se estendia??? Mas ao iniciar as
aulas, a filha parecia decidida a fazer GR, achei melhor deixar para conversar
com a escola em outro momento. Com quase dois meses de aula, juntei este a
outros assuntos e marquei um horário com a direção. Alguns dias antes do dia
marcado, o seguinte diálogo se estabeleceu:
- Mamãe, eu posso fazer futsal?
- Pode sim filha. (falei, sem nem
pensar duas vezes)
- Então eu
quero fazer futsal!
- Mas filha, se você for fazer futsal,
terá que sair do GR. Você quer sair do GR?
- Quero. Não tem problema sair do
GR.
- Você não gosta de fazer GR?
- Gosto. Mas gosto mais de jogar
futebol.
Pronto, fui conversar com a
diretora. Na verdade, eu achava que tudo não passava de um mal entendido,
afinal, havia sido a vice-diretora quem tinha me dada a informação da
possibilidade de escolha dos esportes. Mas não, a diretora confirmou a
informação: menino faz futsal, menina faz GR. Simples assim. Perguntei o porquê
e a resposta foi: “já tivemos meninas jogando futsal aqui, mas os meninos são
muito truculentos e as meninas sempre se machucavam. O futebol é um esporte de
muito contato, por isso restringimos, e hoje só os meninos fazem futsal”.
Indignada não define bem a sensação que tive naquele momento. Fiquei arrasada.
Mas saí da sala com a promessa de uma avaliação do assunto com a equipe de
esporte e uma resposta breve... que não veio, mesmo depois de semanas.
Pus as mãos a obra, e busquei
literaturas que abordassem o assunto. Pensava talvez num artigo científico, mas
achei algo muito melhor: o capítulo 7 dos “Parâmetros Curriculares Nacionais”
elaborado pela Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação –
MEC, que dedica-se exclusivamente à Educação Física nas quatro primeiras séries
da Educação Fundamental. O documento, que se destina aos professores da área,
deve ser norteador para a prática do ensino da educação física entre crianças
do ensino fundamental do país. E ele claramente incentiva a prática mistas
(meninos e meninas) de esportes, destacando inclusive o futebol, como forma de desincentivo
ao sexismo. Fiz uma carta à escola incluindo alguns trechos do documento do
MEC, trechos que transcrevo ao final deste post. Ao final da carta, incluí ainda
a lista de algumas instituições de ensino e/ou esporte que oferecem aulas
mistas de futsal para a faixa etária de minha filha em nossa cidade. A carta
foi entregue com cópia à direção, à coordenação de esportes e aos professores
de futsal.
Várias semanas se passaram e a
resposta continuava não vindo. Apenas quando decidi tirar minha filha do GR e
matriculá-la na escolinha de futsal de um clube próximo de casa, a resposta veio.
Encurtando a história, ela está fazendo futsal há alguns meses na escola e tem
adorado. Os meninos estranharam, e ela ouviu coisas como “Eca, menina fazendo
futsal?!?!” ou “Meninas não sabem jogar futebol, meninas só sabem dançar balé”,
mas tem driblado bem estas questões. Não é uma exímia jogadora, mas nem ela,
nem nós, estamos preocupados com isso. Como aprendi com o próprio documento do
MEC e conversando com profissionais da área, ela está na fase de experimentar,
buscar novas possibilidades, e a última coisa que precisa agora é que digam que
ela não pode fazer algo, principalmente por ser menina.
Aliás, um dia, depois de
perguntar várias vezes quando poderia começar o futsal, ela me perguntou se
demoraria tanto se fosse um menino, e ao ouvir de mim a resposta sincera de que
não, não demoraria tanto, que estava demorando porque ela era a primeira menina
e a escola ainda estava avaliando como recebê-la (quanta baboseira a gente é
obrigada a dizer a um filho...) ela desabafou “mamãe, eu queria ser menino. Ser
menina é muito chato, a gente não pode fazer um monte de coisas!”. Pfff... E
acho que foi por tudo isso que ela gostou tanto de O Rei da Sola. O livro conta a história de Claudinha, a artilheira
do time de futebol da rua do Sobe e Não Desce. É que dias antes da grande final
do campeonato, a sola do tênis de Claudinha descolou, e ficou igual boca de
jacaré. Ah, mas aquele não era um tênis qualquer, era o tênis amarelo de
Claudinha, seu tênis da sorte, que a ajudava a fazer tantos dribles perfeitos. Decididos
a salvar o time, Claudinha e seus amigos procuram a bruxa Vitalina e o
grandioso Rei da Sola para resolver aquele problema.
O que tem de especial nessa
história? O time de Claudinha é formado por meninos e meninas, e em nenhum
momento isso é tratado como um tabu. Meninas e meninos jogam juntos e isso é
só. Simples assim. Mais que isso, a principal jogadora do time é Claudinha, uma menina, e a possibilidade da melhor jogadora não jogar com seu tênis da sorte mexe com todos do time, inclusive os meninos. Um livro fantástico, que trata a igualdade de gênero como algo tão corriqueiro e normal que não tem como as crianças não se encantarem.
Para finalizar, seguem alguns trechos do documento do MEC mencionado acima, com algumas considerações minhas:
Em
sua página 33 o documento lista os objetivos gerais de educação física no
ensino fundamental, e os dois primeiros são: “participar de atividades corporais, estabelecendo relações
equilibradas e construtivas com os outros, reconhecendo e respeitando
características físicas e de desempenho de si próprio e dos outros, sem
discriminar por características pessoais, físicas, sexuais ou sociais” e
“adotar atitudes de respeito mútuo, dignidade e solidariedade em situações
lúdicas e esportivas, repudiando qualquer espécie de violência”.
Na
página 25, o documento expõe explicitamente sua recomendação pela formação de
equipes mistas nas aulas de educação física: “No que tange à questão do gênero, as aulas mistas de Educação Física
podem dar oportunidade para que meninos e meninas convivam, observem-se,
descubram-se e possam aprender a ser tolerantes, a não discriminar e a
compreender as diferenças, de forma a não reproduzir estereotipadamente
relações sociais autoritárias”.
Já
nas páginas 58 a 63, o documento trata de orientações gerais para o ensino da
educação física, destinando a segunda para “Diferenças entre meninos e meninas”,
que inicia-se com o seguinte parágrafo: “Particularmente
no que diz respeito às diferenças entre as competências de meninos e meninas
deve-se ter um cuidado especial. Muitas dessas diferenças são determinadas
social e culturalmente e decorrem, para além das vivências anteriores de cada
aluno, de preconceitos e comportamentos estereotipados. As habilidades com a
bola, por exemplo, um dos objetos centrais da cultura lúdica, estabelecem-se
com a possibilidade de prática e experiência com esse material. Socialmente
essa prática é mais proporcionada aos meninos que, portanto, desenvolvem-se
mais do que meninas e, assim, brincar com bola se transforma em “brincadeira de
menino”.” O documento também diz em sua pág. 52: “Se tiver havido um trabalho para diminuir as diferenças entre as
competências de meninos e meninas no primeiro ciclo,
o desempenho será quantitativamente mais semelhante. Nesse momento, também, as
crianças estão mais cientes das diferenças entre os sexos; portanto, há que se
tomar cuidado em relação às estereotipias, principalmente no que se refere aos
tipos de movimento tradicionalmente considerados”.