03 outubro 2013

Criança, consumismo e troca - parte 1


Há alguns anos, fiz uma viagem à Irecê, no semiárido baiano, como parte de uma disciplina do mestrado. Em dupla deveríamos escolher uma propriedade de agricultura familiar, entrevistar seus proprietários e desenvolver uma análise de viabilidade das mesmas. Eu e um colega escolhemos a propriedade de um senhorzinho que era uma simpatia, e foi mesmo uma ótima escolha. Logo no primeiro dia, estávamos os três em frente à casa da família, onde havia, além do banco de madeira em que sentamos, uma árvore e sob esta, uma montanha de ramas de cenoura. Assim como a maioria dos agricultores da redondeza, ele se dedicava ao plantio de cenoura e beterraba. Lá pelas tantas, o colega perguntou o que ele faria com tanta rama. Ele respondeu: “ah, usamos pra alimentar os animais. Vou distribuir com meus vizinhos” O colega falou, meio assustado com tal resposta, que ele deveria vender as ramas - já que todos usavam poderia ser uma boa fonte de renda extra. O velhinho riu gostoso e respondeu: “Meu filho, eu não vendo porque semana passada foi o meu vizinho quem fez sua colheita e dividiu suas ramas comigo e com os outros. E na semana que vem será o outro vizinho que fará o mesmo. Assim, os animais de todos têm o que comer”.

Nunca esqueci esse episódio, que provavelmente me trouxe a principal lição de toda a viagem. O contei algumas vezes em sala de aula, quando era professora, ao falar do surgimento do modo de produção capitalista. Sempre achei essa uma ótima forma de mostrar como o modo de pensar capitalista não é único, nem mesmo nos dias de hoje. Já tinha tempo que não lembrava dessa história, mas a proximidade do dia das crianças me fez relembrá-la.


Todo ano é a mesma coisa. Antes mesmo de começar outubro, o comércio e a publicidade voltados ao consumo infantil estão em polvorosa.  Os canais de TV, abertos e fechados, desfilam propagandas com toda sorte de produtos para “alegrar o dia da garotada”. As lojas de venda on line não param de enviar e-mails com oferta de produtos e tentadoras promoções. Outdoors, plotagens em ônibus, publicidades em revistas, redes sociais e até em escolas (oi?) fazem questão de lembrar o quanto um presente no dia das crianças é importante para a felicidade do pequeno – UM presente para quem compra, porque é claro que a criança deve receber presente dos pais, dos tios, dindos, avós, amigos, etc. De que outra forma ela terá certeza do quanto é amada??? E no meio de tudo isso estão as crianças, bombardeadas e alucinadas com as promessas de felicidade e atenção que os famosos “presentes de dia das crianças” trarão. Pffff... Que desânimo isso me dá.

O desânimo é principalmente porque a maioria dos adultos está tão absorto por esta história que realmente acredita que será o presente no dia das crianças que fará a alegria do seu filho, e como todo pai/mãe deseja a alegria de seu filho, o tal presente torna-se, evidentemente, imprescindível. Não estou levantando aqui uma bandeira contra “presentes de dia das crianças”, mas trazendo a reflexão do que realmente isso significa. Será mesmo que para o dia dedicado às nossas crianças tornar-se especial e para que eles se sintam amados é preciso que ganhem presentes, de preferência caros e rapidamente “esquecíveis” como prega a mídia? Acho que nossa sociedade há muito perdeu a noção do que é realmente importante nas relações pessoais, e junto perdeu o bom senso em relação ao como e quanto consumir.


Desde o ano passado estou envolvida com dois movimentos que são muito importantes para mim: o Infância Livre do Consumismo (veja aqui e aqui), que este ano está com uma campanha belíssima em prol de um dia das crianças sem consumismo (ilustrada pela queridíssima Lu Azevedo) e a Feira de Troca de Brinquedos e Livros deSalvador – que terá sua terceira edição no próximo sábado, 05 de outubro, no Palacete das Artes no bairro da Graça. Esses movimentos me trouxeram excelentes reflexões sobre o tema, em especial a feira de troca, que me proporcionou vivenciar uma experiência de dia das crianças não consumista.


A ideia é tão simples quanto genial: as crianças e suas família se reúnem no local escolhido e levam aqueles brinquedos e livros que, embora não estejam mais em uso, possam ser usados por outras crianças. Chegando à feira, escolhem um espaço e expõem o que levaram, analisando também o que o interessa entre o exposto por outras crianças. Quando uma criança encontra um objeto que deseja obter, procura seu atual dono com o que tem a oferecer e a negociação se inicia - e nessa etapa é muito importante que a intervenção adulta seja mínima. O importante é que cada criança atribua aos objetos um valor simbólico, não monetário - assim, um brinquedo eletrônico caro pode ser trocado por um quebra-cabeça e deixar duas crianças felizes (eu vi isso acontecer). Se a troca agradar ambos os lados, se estabelece. Se não, cada um terá que procurar outra negociação.

Lembro de quando organizamos a primeira feira e do medo de como se dariam estas negociações, qual seria o nível de frustração das crianças com as trocas não estabelecidas. O aprendizado foi enorme, de forma resumida a experiência mostrou que:

- como em outros aspectos, subestimamos a capacidade de compreensão das crianças. Embora tenha havido um ou outro episódio de frustração manifestada por choro e revolta, foram raríssimos os casos de crianças que voltaram para casa insatisfeitas. Na grande maioria dos casos, em algum momento da feira, elas encontraram outra oportunidade de troca que se efetivou e saíram satisfeitíssimas;

- os maiores conflitos ocorreram quando o adulto interferiu mais do que deveria (colocando seus interesses pessoais acima dos da criança). Não tenho dúvida, a maior dificuldade de internalizar a proposta da feira é do adulto, que tende muitas vezes em comparar monetariamente os objetos;

- a experiência traz para as crianças lições preciosíssimas: desapego, capacidade de negociação e de lidar com a frustração, e principalmente: que a diversão de um brinquedo não está no fato dele ser novo, ou caro, ou badalado, mas no sentido que você atribui a ele!

- o brinquedo não é necessário para fazer as crianças se divertirem e interagirem (bom, muitas vezes até atrapalha a interação). Várias atividades bacanas são marcadas junto com a feira, e muitas vezes o que vemos são brinquedos largados de lado e crianças sendo felizes juntas!

Ah, e sabe o que foi mais legal? Repliquei a experiência na minha família, e já fizemos duas feiras de troca entre primos. Marcamos numa pracinha, levamos comidinhas para um piquenique, depois fazemos as trocas das crianças e no final a troca dos adultos - pois é, adultos também trocam! Já troquei vestido, bolsa, brinco, colar, maquiagem rsrsrs E quem não tem algo que comprou, usou e enjoou, ou até enjoou antes de usar? Garanto que é uma experiência única, muito rica e muito divertida.


O dia das crianças pode sim ser comemorado com alegria e diversão sem precisar da interferência do consumismo. Pense nisso. Amanhã volto com a segunda parte do post e um livro maravilhoso.

2 comentários:

  1. Estou super feliz que as ramas de cenoura são aproveitadas, pelo menos nesta propriedade... Você não imagina como esta notícia alegrou meu dia!
    Beijoca

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  2. Adorei a ideia. Genial!! Vou organizar para colocá-la em prática aqui!!
    Abraços, Kelly - Barretos - SP

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