25 novembro 2013

Menino faz futsal! Menina faz GR!

O rei da sola
texto: Márcia Frazão
ilustrações: Mariana Massarani
editora: Cosac Naify


O livro de hoje tornou-se imediatamente um dos favoritos de Letícia logo que chegou às suas mãos. E ela pediu para relê-lo infinitas vezes. E é claro, tem uma história por trás.

Ela, que frequenta creche desde os quatro meses e meio, desde que fez 1 aninho teve aulas de capoeira (sim, na Bahia é assim). Aos 2 anos começou a pedir incessantemente para ter aulas de balé, influenciada pela coleguinhas que saiam da escola de coque, tutu e sapatilha para as tais aulas. Não começou logo porque ainda não tinha idade, depois foi o nosso bolso o impeditivo, até que aos 4 anos começou as aulas e as frequentou até final do ano passado, quando ela mesma pediu para sair. Aí veio a escola nova, que inclui natação no horário normal da aula – e ela adora. E no contraturno, me foi dito durante a pré-matrícula, ela teria direito a mais um esporte a escolher: futsal ou ginástica rítmica (GR). Perguntei a ela o que preferia e a resposta foi imediata: futsal! E na semana seguinte: GR. E na seguinte a seguinte: futsal. Ainda era agosto, então decidimos que, quando as aulas começassem, ela faria uma aula de cada e decidiria.

Entretanto, na matrícula, em dezembro, fui informada por uma funcionária da escola que não havia o que escolher: menino faz futsal, menina faz GR. Exatamente assim. Fiquei revoltada, acima de tudo porque, a escola que escolhi com tanto cuidado e por tantos meses, tinha um posicionamento claramente sexista em relação aos esportes – aliás, até onde esse posicionamento se estendia??? Mas ao iniciar as aulas, a filha parecia decidida a fazer GR, achei melhor deixar para conversar com a escola em outro momento. Com quase dois meses de aula, juntei este a outros assuntos e marquei um horário com a direção. Alguns dias antes do dia marcado, o seguinte diálogo se estabeleceu:

- Mamãe, eu posso fazer futsal?
- Pode sim filha. (falei, sem nem pensar duas vezes)
- Então eu quero fazer futsal!
- Mas filha, se você for fazer futsal, terá que sair do GR. Você quer sair do GR?
- Quero. Não tem problema sair do GR.
- Você não gosta de fazer GR?
- Gosto. Mas gosto mais de jogar futebol.

Pronto, fui conversar com a diretora. Na verdade, eu achava que tudo não passava de um mal entendido, afinal, havia sido a vice-diretora quem tinha me dada a informação da possibilidade de escolha dos esportes. Mas não, a diretora confirmou a informação: menino faz futsal, menina faz GR. Simples assim. Perguntei o porquê e a resposta foi: “já tivemos meninas jogando futsal aqui, mas os meninos são muito truculentos e as meninas sempre se machucavam. O futebol é um esporte de muito contato, por isso restringimos, e hoje só os meninos fazem futsal”. Indignada não define bem a sensação que tive naquele momento. Fiquei arrasada. Mas saí da sala com a promessa de uma avaliação do assunto com a equipe de esporte e uma resposta breve... que não veio, mesmo depois de semanas.

Pus as mãos a obra, e busquei literaturas que abordassem o assunto. Pensava talvez num artigo científico, mas achei algo muito melhor: o capítulo 7 dos “Parâmetros Curriculares Nacionais” elaborado pela Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação – MEC, que dedica-se exclusivamente à Educação Física nas quatro primeiras séries da Educação Fundamental. O documento, que se destina aos professores da área, deve ser norteador para a prática do ensino da educação física entre crianças do ensino fundamental do país. E ele claramente incentiva a prática mistas (meninos e meninas) de esportes, destacando inclusive o futebol, como forma de desincentivo ao sexismo. Fiz uma carta à escola incluindo alguns trechos do documento do MEC, trechos que transcrevo ao final deste post. Ao final da carta, incluí ainda a lista de algumas instituições de ensino e/ou esporte que oferecem aulas mistas de futsal para a faixa etária de minha filha em nossa cidade. A carta foi entregue com cópia à direção, à coordenação de esportes e aos professores de futsal.

Várias semanas se passaram e a resposta continuava não vindo. Apenas quando decidi tirar minha filha do GR e matriculá-la na escolinha de futsal de um clube próximo de casa, a resposta veio. Encurtando a história, ela está fazendo futsal há alguns meses na escola e tem adorado. Os meninos estranharam, e ela ouviu coisas como “Eca, menina fazendo futsal?!?!” ou “Meninas não sabem jogar futebol, meninas só sabem dançar balé”, mas tem driblado bem estas questões. Não é uma exímia jogadora, mas nem ela, nem nós, estamos preocupados com isso. Como aprendi com o próprio documento do MEC e conversando com profissionais da área, ela está na fase de experimentar, buscar novas possibilidades, e a última coisa que precisa agora é que digam que ela não pode fazer algo, principalmente por ser menina.

Aliás, um dia, depois de perguntar várias vezes quando poderia começar o futsal, ela me perguntou se demoraria tanto se fosse um menino, e ao ouvir de mim a resposta sincera de que não, não demoraria tanto, que estava demorando porque ela era a primeira menina e a escola ainda estava avaliando como recebê-la (quanta baboseira a gente é obrigada a dizer a um filho...) ela desabafou “mamãe, eu queria ser menino. Ser menina é muito chato, a gente não pode fazer um monte de coisas!”. Pfff... E acho que foi por tudo isso que ela gostou tanto de O Rei da Sola. O livro conta a história de Claudinha, a artilheira do time de futebol da rua do Sobe e Não Desce. É que dias antes da grande final do campeonato, a sola do tênis de Claudinha descolou, e ficou igual boca de jacaré. Ah, mas aquele não era um tênis qualquer, era o tênis amarelo de Claudinha, seu tênis da sorte, que a ajudava a fazer tantos dribles perfeitos. Decididos a salvar o time, Claudinha e seus amigos procuram a bruxa Vitalina e o grandioso Rei da Sola para resolver aquele problema.

O que tem de especial nessa história? O time de Claudinha é formado por meninos e meninas, e em nenhum momento isso é tratado como um tabu. Meninas e meninos jogam juntos e isso é só. Simples assim. Mais que isso, a principal jogadora do time é Claudinha, uma menina, e a possibilidade da melhor jogadora não jogar com seu tênis da sorte mexe com todos do time, inclusive os meninos. Um livro fantástico, que trata a igualdade de gênero como algo tão corriqueiro e normal que não tem como as crianças não se encantarem.

Para finalizar, seguem alguns trechos do documento do MEC mencionado acima, com algumas considerações minhas:

Em sua página 33 o documento lista os objetivos gerais de educação física no ensino fundamental, e os dois primeiros são: “participar de atividades corporais, estabelecendo relações equilibradas e construtivas com os outros, reconhecendo e respeitando características físicas e de desempenho de si próprio e dos outros, sem discriminar por características pessoais, físicas, sexuais ou sociais” e “adotar atitudes de respeito mútuo, dignidade e solidariedade em situações lúdicas e esportivas, repudiando qualquer espécie de violência”.

Na página 25, o documento expõe explicitamente sua recomendação pela formação de equipes mistas nas aulas de educação física: “No que tange à questão do gênero, as aulas mistas de Educação Física podem dar oportunidade para que meninos e meninas convivam, observem-se, descubram-se e possam aprender a ser tolerantes, a não discriminar e a compreender as diferenças, de forma a não reproduzir estereotipadamente relações sociais autoritárias”.

Já nas páginas 58 a 63, o documento trata de orientações gerais para o ensino da educação física, destinando a segunda para “Diferenças entre meninos e meninas”, que inicia-se com o seguinte parágrafo: “Particularmente no que diz respeito às diferenças entre as competências de meninos e meninas deve-se ter um cuidado especial. Muitas dessas diferenças são determinadas social e culturalmente e decorrem, para além das vivências anteriores de cada aluno, de preconceitos e comportamentos estereotipados. As habilidades com a bola, por exemplo, um dos objetos centrais da cultura lúdica, estabelecem-se com a possibilidade de prática e experiência com esse material. Socialmente essa prática é mais proporcionada aos meninos que, portanto, desenvolvem-se mais do que meninas e, assim, brincar com bola se transforma em “brincadeira de menino”.” O documento também diz em sua pág. 52: “Se tiver havido um trabalho para diminuir as diferenças entre as competências de meninos e meninas no primeiro ciclo[1], o desempenho será quantitativamente mais semelhante. Nesse momento, também, as crianças estão mais cientes das diferenças entre os sexos; portanto, há que se tomar cuidado em relação às estereotipias, principalmente no que se refere aos tipos de movimento tradicionalmente considerados”.




[1] Segundo o documento, o primeiro ciclo do ensino fundamental vai até o 3º ano deste.

8 comentários:

  1. Acabei de encontrar um título para presentear a minha menina. Não vou nem dizer o motivo que ela irá adorar o presente!
    Quero apenas te convidar para dar uma olhadinha nesta foto aqui! Beijo

    http://ladodeforadocoracao.blogspot.com.br/2013/09/futebol-duas-situacoes.html

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  2. Ah! Esqueci de dizer que ainda não conheço a escritora Márcia Frazão.
    Já o traço da Mariana Massarani tem muitos fãs por aqui!
    Bj

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  3. Que legal, Ana Paula! Quem sabe um dias nossas meninas não batem uma bolinha juntas? Bjs

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  4. Excelente texto. Experimentar/ vivenciar são palavras que fazem parte do cotidiano escolar. Parabéns! Beijos em nossa Letícia!

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  5. oi Ilca, obrigada! Pois é, pelo menos deveria fazer parte...
    Essa semana ela me falou "mamãe, sabia que eu fui a primeira menina da minha escola a fazer futsal?" rsrsrs
    saudades de vcs,
    Mirtes Aquino

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  6. Olá! Adorei o blog e o texto, parabéns :) Vou compartilhar as indicações de livros.

    Mas fiquei querendo saber qual é a classificacao indidcativa do livro.. Como descubro isso?

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  7. Mariana,
    que bom que gostou do blog. Fico muito feliz que tenha chegado aqui.
    Embora tenha muita vontade fazer isso, não coloco classificação etária dos livros, pq acho que é algo muito complexo (e não tenho conhecimento suficiente para isso rsrs). Por isso criei as sessões: Preciso que leiam para mim; Começo a me arriscar na leitura e Já sou um leitor independente e todos os meus posts de livros estão em pelo menos uma desta sessão. O rei da sola, por exemplo, está nas sessões Começo a me arriscar na leitura e Já sou um leitor independente. Para consultar os livros de cada sessão, há links no lado superior direito do blog (Encontre livros para cada tipo de leitor). Sei que não é o ideal, mas foi a forma que encontrei para ajudar quem busca livros aqui.
    Qualquer dúvida entre em contato, ok? Meu e-mail está no cabeçalho "Sobre nossos cachinhos"
    bjs,
    Mirtes Aquino

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  8. Oi Mirtes,

    Só hoje li esse post e achei uma ótima reflexão, um ótimo aprendizado. Além do livro que parece ser muito interessante. O problema de eu ter conhecido o seu blog é me conter para não sair comprando todos os livros de uma só vez. Seu blog é muito bom. Não pare de postar, ok!! Abraços. Kelly (mãe da Beatriz e da Sofia) - Barretos - SP

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