05 outubro 2013

Criança, consumismo e troca - parte 2

O giz vermelho
texto: Iris van der Heide
ilustrações: Marije Tolman
tradutora: Monica Stahel
editora: Martins Fontes

"Sara esta aborrecida. Queria desenhar no chão, com giz vermelho, mas a calçada era muito irregular. Todos os seus desenhos davam errado. Já ia jogar o giz fora quando viu Tim do outro lado da rua. Ele estava brincando com suas bolas de gude. "Deve ser divertido", Sara pensou."

É assim que começa O giz vermelho, um livro que conheci numa compra "às cegas" de uma mega promoção em uma loja on line. Havia me apaixonado pela sinopse, que parecia refletir exatamente a ideia da Troca de Brinquedos. E o livro não decepcionou. É que Sara tenta resolver seu tédio propondo a Tim uma troca: seu giz vermelho pelas bolas de gude de Tim. "É um giz mágico. Tudo que você desenha com ele cria vida." E Tim na mesma hora desenhou um dragão - veja a ilustração:

imagem tirada daqui (blog Imensa Vida) 

Pois é, para Tim o giz é mesmo mágico, e seu dragão ganha vida! Mas logo Sara fica insatisfeita com as bolas de gude também - "Não tem graça nenhuma." A solução? Novas trocas! E as bolas de gude sem graça viram pérolas do mar na mão de Sam, e a flauta desafinada, faz todos os ratos da cidade seguirem Ben. Mas Sara continua trocando, porque ela não consegue perceber que o que faz um brinquedo especial não está no brinquedo, mas no significado que damos a ele. O brinquedo sem a pitada da criatividade e da imaginação, não garante diversão alguma. Na verdade, o brinquedo, assim como o livro, é tão somente um instrumento. É o BRINCAR, o SENTIR, o SONHAR e o IMAGINAR que fazem a brincadeira.

No final do livro, e de tantas trocas, adivinha qual o último brinquedo que Sara trocou??? Pois é, o seu giz vermelho, que tinha virado uma amarelinha na mão de Ben. Só então Sara percebe que especial mesmo é brincar junto com seus amigos.

imagem tirada daqui (blog Imensa Vida)

Hoje nós realizamos a terceira Feira de Troca de Brinquedos e Livros de Salvador, e a imensa alegria se repetiu. O Palacete das Artes é um lugar lindo, acolhedor e onde se respira cultura. Novamente, foi simplesmente mágico ver as crianças interagindo, negociando, trocando, sorrindo, brincando, e às vezes chorando. Tudo é aprendizado. Letícia, que nunca tinha tido problemas em suas trocas, hoje chateou-se pela primeira vez e chorou: queria um trenzinho, e quando a troca já estava quase estabelecida, uma outra criança fez uma oferta que agradou mais e levou seu objeto de desejo. Ficou chateada, chorosa, mas logo aceitou que não se pode controlar tudo, e saiu de lá muito feliz com suas trocas.

Para ver mais fotos clique aqui.

E você, já pensou em organizar uma feira de troca? Não precisa ser nada grandioso - basta ver as fotos das feiras de troca entre primos que organizamos na minha família. Então, por que não entre as crianças do prédio? Ou da sala de aula do seu filho? Que tal propor uma feira de troca na escola? Na sua igreja? Entre as crianças que frequentam a pracinha ou o parque? Entre os primos? As possibilidades são infinitas! Cada grupo pode fazer suas próprias regras. O importante é que as crianças estabeleçam o valor de cada brinquedo e livro sem usar a lógica monetária, e tenham liberdade para estabelecer suas negociações. Garanto que será gratificante.


03 outubro 2013

Criança, consumismo e troca - parte 1


Há alguns anos, fiz uma viagem à Irecê, no semiárido baiano, como parte de uma disciplina do mestrado. Em dupla deveríamos escolher uma propriedade de agricultura familiar, entrevistar seus proprietários e desenvolver uma análise de viabilidade das mesmas. Eu e um colega escolhemos a propriedade de um senhorzinho que era uma simpatia, e foi mesmo uma ótima escolha. Logo no primeiro dia, estávamos os três em frente à casa da família, onde havia, além do banco de madeira em que sentamos, uma árvore e sob esta, uma montanha de ramas de cenoura. Assim como a maioria dos agricultores da redondeza, ele se dedicava ao plantio de cenoura e beterraba. Lá pelas tantas, o colega perguntou o que ele faria com tanta rama. Ele respondeu: “ah, usamos pra alimentar os animais. Vou distribuir com meus vizinhos” O colega falou, meio assustado com tal resposta, que ele deveria vender as ramas - já que todos usavam poderia ser uma boa fonte de renda extra. O velhinho riu gostoso e respondeu: “Meu filho, eu não vendo porque semana passada foi o meu vizinho quem fez sua colheita e dividiu suas ramas comigo e com os outros. E na semana que vem será o outro vizinho que fará o mesmo. Assim, os animais de todos têm o que comer”.

Nunca esqueci esse episódio, que provavelmente me trouxe a principal lição de toda a viagem. O contei algumas vezes em sala de aula, quando era professora, ao falar do surgimento do modo de produção capitalista. Sempre achei essa uma ótima forma de mostrar como o modo de pensar capitalista não é único, nem mesmo nos dias de hoje. Já tinha tempo que não lembrava dessa história, mas a proximidade do dia das crianças me fez relembrá-la.


Todo ano é a mesma coisa. Antes mesmo de começar outubro, o comércio e a publicidade voltados ao consumo infantil estão em polvorosa.  Os canais de TV, abertos e fechados, desfilam propagandas com toda sorte de produtos para “alegrar o dia da garotada”. As lojas de venda on line não param de enviar e-mails com oferta de produtos e tentadoras promoções. Outdoors, plotagens em ônibus, publicidades em revistas, redes sociais e até em escolas (oi?) fazem questão de lembrar o quanto um presente no dia das crianças é importante para a felicidade do pequeno – UM presente para quem compra, porque é claro que a criança deve receber presente dos pais, dos tios, dindos, avós, amigos, etc. De que outra forma ela terá certeza do quanto é amada??? E no meio de tudo isso estão as crianças, bombardeadas e alucinadas com as promessas de felicidade e atenção que os famosos “presentes de dia das crianças” trarão. Pffff... Que desânimo isso me dá.

O desânimo é principalmente porque a maioria dos adultos está tão absorto por esta história que realmente acredita que será o presente no dia das crianças que fará a alegria do seu filho, e como todo pai/mãe deseja a alegria de seu filho, o tal presente torna-se, evidentemente, imprescindível. Não estou levantando aqui uma bandeira contra “presentes de dia das crianças”, mas trazendo a reflexão do que realmente isso significa. Será mesmo que para o dia dedicado às nossas crianças tornar-se especial e para que eles se sintam amados é preciso que ganhem presentes, de preferência caros e rapidamente “esquecíveis” como prega a mídia? Acho que nossa sociedade há muito perdeu a noção do que é realmente importante nas relações pessoais, e junto perdeu o bom senso em relação ao como e quanto consumir.


Desde o ano passado estou envolvida com dois movimentos que são muito importantes para mim: o Infância Livre do Consumismo (veja aqui e aqui), que este ano está com uma campanha belíssima em prol de um dia das crianças sem consumismo (ilustrada pela queridíssima Lu Azevedo) e a Feira de Troca de Brinquedos e Livros deSalvador – que terá sua terceira edição no próximo sábado, 05 de outubro, no Palacete das Artes no bairro da Graça. Esses movimentos me trouxeram excelentes reflexões sobre o tema, em especial a feira de troca, que me proporcionou vivenciar uma experiência de dia das crianças não consumista.


A ideia é tão simples quanto genial: as crianças e suas família se reúnem no local escolhido e levam aqueles brinquedos e livros que, embora não estejam mais em uso, possam ser usados por outras crianças. Chegando à feira, escolhem um espaço e expõem o que levaram, analisando também o que o interessa entre o exposto por outras crianças. Quando uma criança encontra um objeto que deseja obter, procura seu atual dono com o que tem a oferecer e a negociação se inicia - e nessa etapa é muito importante que a intervenção adulta seja mínima. O importante é que cada criança atribua aos objetos um valor simbólico, não monetário - assim, um brinquedo eletrônico caro pode ser trocado por um quebra-cabeça e deixar duas crianças felizes (eu vi isso acontecer). Se a troca agradar ambos os lados, se estabelece. Se não, cada um terá que procurar outra negociação.

Lembro de quando organizamos a primeira feira e do medo de como se dariam estas negociações, qual seria o nível de frustração das crianças com as trocas não estabelecidas. O aprendizado foi enorme, de forma resumida a experiência mostrou que:

- como em outros aspectos, subestimamos a capacidade de compreensão das crianças. Embora tenha havido um ou outro episódio de frustração manifestada por choro e revolta, foram raríssimos os casos de crianças que voltaram para casa insatisfeitas. Na grande maioria dos casos, em algum momento da feira, elas encontraram outra oportunidade de troca que se efetivou e saíram satisfeitíssimas;

- os maiores conflitos ocorreram quando o adulto interferiu mais do que deveria (colocando seus interesses pessoais acima dos da criança). Não tenho dúvida, a maior dificuldade de internalizar a proposta da feira é do adulto, que tende muitas vezes em comparar monetariamente os objetos;

- a experiência traz para as crianças lições preciosíssimas: desapego, capacidade de negociação e de lidar com a frustração, e principalmente: que a diversão de um brinquedo não está no fato dele ser novo, ou caro, ou badalado, mas no sentido que você atribui a ele!

- o brinquedo não é necessário para fazer as crianças se divertirem e interagirem (bom, muitas vezes até atrapalha a interação). Várias atividades bacanas são marcadas junto com a feira, e muitas vezes o que vemos são brinquedos largados de lado e crianças sendo felizes juntas!

Ah, e sabe o que foi mais legal? Repliquei a experiência na minha família, e já fizemos duas feiras de troca entre primos. Marcamos numa pracinha, levamos comidinhas para um piquenique, depois fazemos as trocas das crianças e no final a troca dos adultos - pois é, adultos também trocam! Já troquei vestido, bolsa, brinco, colar, maquiagem rsrsrs E quem não tem algo que comprou, usou e enjoou, ou até enjoou antes de usar? Garanto que é uma experiência única, muito rica e muito divertida.


O dia das crianças pode sim ser comemorado com alegria e diversão sem precisar da interferência do consumismo. Pense nisso. Amanhã volto com a segunda parte do post e um livro maravilhoso.