03 agosto 2012

Da arte de criar um filho


Mamãe Zangada
texto e ilustrações: Jutta Bauer
editora: Cosac Naify

Eu sempre tenho uma lista considerável de livros “a comprar”, quase sempre uma lista crescente, já que minha restrição orçamentária não permite que os títulos saiam da lista com a mesma freqüência que entram. A maioria dos livros que trago aqui ficou em quarentena nessa tal listagem, alguns por mais outros por menos tempo, mas com o livro de hoje foi diferente. É que Mamãe Zangada não chegou a fazer parte da lista, embora eu o conheça há bastante tempo.

Eu não lembro exatamente onde soube de sua existência, mas sei que foi com a resenha que Lu Conti fez que tratei de conhecê-lo. E ele foi perturbador naquele momento. Como apresentá-lo a minha filha, então com uns 2 aninhos? E aí preciso dizer o quanto gosto dos livros de Jutta Bauer, ilustradora e escritora alemã, que produz livros assim, perturbadores, reflexivos, questionadores. Daquele jeito que eu gosto: traços simples, poucas palavras e muitos significados. Achei melhor esquecer a história do dia que mamãe pingüim grita tanto com seu filhote que o pequeno se despedaça. O livro fala do impacto que as “explosões maternas” causam nas crianças. O volume da voz, a acidez das palavras, a irracionalidade das acusações e a agressão das ameaças. O pequeno se despedaça, e na metáfora produzida por Jutta, o bico do pingüim filho vai parar nas montanhas, suas asas na selva, seu corpo afunda no mar, e suas patas chegam ao deserto, correndo sem rumo. Ele não pode falar, nem gritar, nem voar... Mas a mamãe procura o filho em todos os lugares, até encontrar, juntar e costurar, ela própria, cada um dos pedacinho separado... para então lhe pedir desculpas.

Naquele momento eu não conseguia me imaginar entregando aquele livro à minha filha, assumindo as limitações e falhas maternas, até porque eu me considerava uma mãe bastante paciente e controlada... E o tempo passou, e a filha cresceu, e a mãe foi se envolvendo com muita coisa extra-maternidade e os dilemas mãe e filha foram mudando. E eu me vi cada dia trabalhando mais, me estressando mais, me ausentando mais, fisicamente ou não, do seu dia a dia. E fui ficando menos paciente e menos controlada. Todo mãe explode  vez ou outra – ou deveria, afinal o que não se extravasa vira doença, e não há nada mais triste do que uma mãe ausente por motivos assim – mas eu sentia que estava explodindo demais, e as explosões estavam pesadas demais, e isso me incomodava enormemente.

Resolvi parar e reavaliar tudo. Meu trabalho me absorve bastante, mas eu gosto de trabalhar, então eu precisava arrumar as coisas para que cada uma ocupe o espaço que lhe cabe. Fiz uns ajustes nos horários e estabeleci algumas coisas: meus finais de semana são para mim e minha família, reduzi consideravelmente meu tempo na internet e as noites são novamente para olhar suas atividades da escola, fazer uma comidinha gostosa para ela, acompanhar suas brincadeiras e colocá-la para dormir. Parece bobagem, mas as coisas estavam realmente emboladas: a noite eu ficava na internet e não acompanhava o que ela fazia, e ela acabava ficando na televisão até muito tarde, e dava trabalho para dormir, e muito mais para acordar. E eu? Explodia. E depois morria de culpa. O tal ciclo vicioso em ação. Ainda quero mudar algumas coisas, mas dá para perceber que consegui dar uma quebrada no tal ciclo. Chego em casa mais tranqüila, coloco ela para fazer a atividade e acompanho tudo enquanto preparo algo para comer - um balcão liga a cozinha à sala - comemos e ficamos juntas até a hora de colocá-la para dormir, cedo. Com isso ela tem acordado cedo e nossos conflitos foram reduzidos. Ahhh, mas eu ainda estouro de vez em quando, e ela não se cansa de me testar. Tudo bem, é importante para nós duas que os conflitos aconteçam, desde que estejam envoltos em muito respeito e amor.

E foi nesse momento que lembrei novamente de Mamãe Zangada, e pude vê-lo com outros olhos. O livro explicita algo que às vezes queremos deixar esquecido: o impacto devastador que nossas palavras, gestos, atos impulsivos podem ter sobre nossos filhos. Faz a mãe pensar, refletir, reavaliar, e isso é sempre bom. Mas faz bem para os filhos também. Entreguei-o a minha pequena numa forma silenciosa de dizer: “mamãe nem sempre é legal com você, às vezes é injusta e te machuca. Eu sei disso e estou tentando mudar, mas eu nunca vou te deixar despedaçada, eu vou sempre juntar e costurar seus pedaços para te deixar inteira novamente, como você merece.” Não é fácil, mas criar filhos não é mesmo algo fácil de ser feito. E desta arte, eu sou eterna aprendiz.

2 comentários:

  1. As últimas frases do teu belo texto me emocionaram.
    Descobri que também tenho lista de quarentena! adorei isto!
    Mas vou encontrar este título porque também sou eterna aprendiz desta arte.
    Beijo

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  2. Mil,
    Linda resenha! Emocionante!
    MAMÃE ZANGADA o livro certo,
    apresentado para Letícia
    na hora certa.
    Eu também gosto muito da
    Jutta Bauer.
    um beijo
    Cristina Sá
    http://cristinasaliteraturainfantile
    juvenil.blogspot.com

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