Pretinha de Neve e os Sete Gigantes
texto e ilustrações: Rubem Filho
editora: Paulinas
Imagino que os que me conhecem há mais tempo estranhem que
uma versão politicamente correta de um clássico infantil chegue aqui ao
Cachinhos. Quando a onda do "politicamente correto" chegou até
mim, rapidamente me posicionei contra ela. Porque... ora, porque era chata
demais. Não poder cantar as cantigas de roda do jeito que eu, e várias gerações
antes de mim, cantaram, é chato demais! Não poder usar uma expressão, e ainda
substituí-la por outra que “assassina o português", mais que chato é
constrangedor!
Pior é quando o "politicamente correto" chega à
literatura infantil. Mexer nas histórias clássicas, transformar lobo mau em
lobo bom, acabar conflitos e tornar princesas e madrastas amigas, dentre outras
coisas, torna tudo descaracterizado e... chato. Além disso, a
infância precisa ter acesso a conflitos, desafios e seres temíveis de uma
posição segura para compreender melhor sua realidade e o mundo em que vive, e assim
amadurecer. Um final feliz depois de todas as intempéries da história é
libertador não apenas para as crianças.
Mas enquanto criticava e acusava de chata tanta patrulha, a
danada da minha cabeça insistia em me fazer pensar (que chato!). Fui refletindo
sobre a importância de se parar para reavaliar o "modus operandi"
para que o mundo e nossas sociedades possam evoluir. Bom, eu só não queria ser
A chata que faz isso, mas comecei a admirar bastante quem tem peito para ser
tão chato assim - recentemente encontrei nesse texto uma ilustração do que minha cabeça fervilhava.
E foi então que cheguei ao maravilhoso e perturbador texto
de Ana Maria Gonçalves sobre a polêmica em torno de Monteiro Lobato e do seu
livro Caçadas de Pedrinho. Na época eu estava investigando para tentar entender
melhor o caso: em resumo, estava sendo questionada a adequação à legislação
antirracista deste livro, escolhido para ser distribuído nas escolas públicas de
Ensino Fundamental, e caso não houvesse adequação, solicitado que o mesmo fosse
recolhido*. Grande polêmica se deu a partir daí. Anônimos e famosos
posicionavam-se contra o absurdo de querer censurar o maior escritor para
crianças do Brasil, e chamar de racista um homem que viveu em uma época em que
chamar um negro de urubu era algo absolutamente aceitável. Afinal, quantos
“homens e mulheres de bem” haviam tido acesso a este livro na infância?
Mas o texto de Ana Maria Gonçalves foi além da falácia
corriqueira, e me fez pela primeira vez ver realmente a questão do
“politicamente correto” com outros olhos. O questionamento inquieto que ela
lança é: afinal de contas, de quem estamos falando??? Trata-se de uma caça às
bruxas em cima de Monteiro Lobato? Não, não é esta a questão. Lobato era
indiscutivelmente racista e defensor da eugenia, e digo isso não baseada em
suas obras, mas em trechos de cartas suas trocadas dentre outros com o médico
Renato Kehl que no Brasil propagava a superioridade racial (um trechinho para
ilustrar: “um dia se fará justiça ao Ku
Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu
lugar... porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva” –
trecho de carta a Arthur Neiva retirado daqui).
Mas, lamento, não é de Lobato que devemos falar. Sua obra é de qualidade
indiscutível, assim como seu talento literário e o legado que ele deixou para a
literatura infantil brasileira. Mesmo sabendo que na mesma época em que ele
viveu, viveram homens que lutaram pela igualdade racial, não é dele que esta
polêmica trata. Questionar o uso de Caçadas de Pedrinho por alunos da nossa
rede pública de ensino fundamental não é um simples ato de afronta ao racista
Monteiro Lobato.
Tampouco esta polêmica trata de mim ou de você, caro leitor
(a não ser que alguma criança negra estudante de escola pública esteja lendo
este texto – o que me deixaria orgulhosíssima). Lamento, “homens e mulheres de
bem”, independente da cor da sua pele, não é de você que devemos falar. Quem
questionou a adequação do livro à legislação antirracial falava das milhares de
crianças negras brasileiras, estudantes de escolas públicas, tendo que conviver
na sala de aula com expressões racistas. Recomendo que leiam na íntegra o texto
de Ana Maria, mas vou copiar um trecho deste aqui por minha absoluta
incapacidade de reproduzir bem, de outra forma, suas palavras:
“Peço agora que
você faça um exercício: imagine uma criança na sala de aula das escolas
públicas de ensino médio e fundamental no Brasil. Negra. Sei que não deve ser
fácil colocar-se sob a pele de uma criança negra, por isso penso em alternativas. Tente
se colocar sob a pele de uma criança judia numa sala de aula na Alemanha dos
anos 30 e ouça, por exemplo, comentários preconceituosos em relação aos judeus...
Ou então, ponha-se no lugar de uma criança com necessidades especiais e ouça
comentários alusivos ao seu "defeito"... Talvez agora você já consiga
sentir na pele o que significa ser essa criança negra e perceber a carga
histórica dessas palavras sendo arrastada desde séculos passados: "macaca
de carvão", "carne preta" ou "urubu fedorento", tudo
lá, em Caçadas de Pedrinho, onde "negra" também é vocativo. Sim, sei
que "não se fala mais assim", que "os tempos eram outros".
Mas sim, também sei que as palavras andam cheias de significados, impregnadas
das maldades que já cometeram, como lâminas que conservam o corte por estarem
sempre ali, arrancando casca sobre casca de uma ferida que nunca acaba de
cicatrizar.
Fique um pouco de
tempo lá, no lugar dessa criança, e tente entender como ela se sente. Herdeira
dessa ferida da qual ela vai ter que aprender a tomar conta e passar adiante,
como antes tinham feito seus pais, avós, bisavós e tataravós, de quem ela
também herdou os lábios grossos, o cabelo crespo, o nariz achatado, a pele
escura.”
Percebem o quanto é fácil e vago falar do racismo enquanto
alguém que não sofre nem dissemina o racismo? Como dizer se “macaca de carvão”
é ou não uma expressão adequada para crianças se você não é uma criança negra
em uma sala de aula provavelmente cheia de crianças brancas? Enquanto não
aprendermos a nos colocar no lugar do outro, enquanto não sairmos da posição de
centro das atenções, muito pouco irá mudar. E enquanto isso, e considerando que trata-se de crianças, não seria mais prudente pecar pelo zelo?
Poderia falar muito mais sobre isso, mas prefiro contar um
fato pessoal para ilustrar a questão: há alguns meses li uma notícia na
internet que dizia que o SBT tinha sido obrigado pelo Ministério Público a trocar
a expressão “seu negro” por “seu sujo” usada pela personagem Maria Joaquina em
relação à personagem Cirilo, na novela Carrossel. Lembro de ter visto uma cena em que a expressão foi usada e termos comentado,
eu e meu marido, como “seu sujo” parecia muito mais depreciativo a um negro, e
que seria preferível ser usado simplesmente negro. Uns dois meses depois minha
filha chegou da escola perguntando, visivelmente surpresa, se nós sabíamos o
porquê de Maria Joaquina maltratar Cirilo. Meio assustados dissemos que não e
ela respondeu “porque ele é negro, mamãe! Porque ele é NEGRO, você
acredita?!?!”. Para nossa surpresa, nem ela nem os seus coleguinhas de sala,
mesmo depois de assistir episódios da trama, tinham percebido que o tratamento
que o menino negro recebia da menina branca referia-se a cor da sua pele. Foi
preciso um adulto chamar a atenção de uma das crianças, e esta a atenção das
demais, para que eles percebessem "o óbvio". Se a expressão “seu negro” estivesse
sendo usada não teriam eles internalizado a questão sozinhos e muito mais rápido?
Diferente do que possa parecer, o preconceito não é
inerente aos humanos. Preconceito se aprende, se ensina – em frases
despretensiosas, em olhares maldosos, em gestos não contidos... e não sejamos
ingênuos, está em mim, em você, inclusive na criança que já teve contato com
ele. Precisamos de uma revolução muito maior e dolorosa para construir um mundo
mais igualitário do que simplesmente parar de trabalhar no dia 20 de novembro...
* Recentemente um requerimento similar foi
encaminhado a CGU em relação ao livro Negrinha, também de Monteiro Lobato, comprado
para distribuição nas escolas públicas de Ensino Médio (também pelo PNBE – Programa
Nacional de Bibliotecas nas Escolas) - notícia aqui. Para conhecer o parecer do MEC sobre Caçadas de Pedrinho veja aqui. Mais informações aqui e aqui.
Amei seu texto e me identifiquei muito, porque, num primeiro momento, também pensei: "ah, só faltava esta, agora vão censurar monteiro Lobato". Mas foi fácil pensar assim sem ser criança, negra, estudante de escola pública, né? Daí fui fazer o que nunca tinha feito de verdade (sim, sou uma leitora voraz desde pequena, mas nunca tinha lido Lobato, só visto a série de TV) e é degradante. É bizarro, é absurdo que este cara seja "o maior escritor brasileiros". Eu amo muito mais Ziraldo, para mim ele é o maior escritor brasileiro. E aí, menina, não foi nem preciso de colocar no lugar da criança negra de escola pública (coisa que para mim não é difícil, afinal sou muito sensível à questão do racismo, até porque não sou negra, mas também não sou branca), eu achei aquilo uma bela de uma porcaria, totalmente impertinente. Aliás, na própria série de Tv sobre o Sítio, na Globo, eles chama a Tia Anastácia de "negra de estimação". Não dá, né? Eu não tenho mais a menor vontade que as meninas leiam Lobato...
ResponderExcluirBom, agora vou ler o texto que vc linkou, vim aqui mais para desabafar mesmo.
Beijos
Lá em cima eu quis me referir ao "maior escritor infantil brasileiro". Porque a obra jornalística de lobato é um lixo! Esta eu conhecia, li na faculdade.
ResponderExcluirOlha, eu sou a favor de mantermos tradições, sim, mas de pensarmos sobre elas. Se uma obra me parece degradante, não vejo por que repassá-la adiante. Se ele tivesse escrito um livro infantil defendendo abertamente (porque o faz de forma velada) o Ku Kux Klan ainda assim iam achar legal que as crianças de hoje o lessem? E se ele defendesse o Holocausto (sim, para muitos, é muito mais fácil se sensibilizar e se colocar no lugar do judeu branquinho dos anos 40).
Beijos indignados
Beijos
pois é, Paloma. Esse é um assunto muito delicado, pq para a maioria dizer que um livro do Sítio do Picapau Amarelo não deve ser distribuído é desmerecer totalmente a sua própria infância - "Como assim? Como algo que foi bom para mim não vai ser bom para estudantes de escolas públicas?" Por isso concordo qdo Ana Maria fala de sairmos do centro da discussão - não é de você nem da sua vida que estamos falando, ora! E sinceramente, acho muita pretensão dizer que "fui criada assim e não sou racista" - não acredito que ninguém que viva hoje em nossa sociedade não seja racista. Diariamente me pego tendo pequenos atos e pensamentos racistas, coisas que não consigo evitar pq estão entranhadas em mim (mas me esforço enormemente para amenizar e evitar). Por isso acho que se livrar do racismo exige muito mais esforço "e dor".
ResponderExcluirPor outro lado, acho realmente de excelente qualidade os livros da turma do Sítio, embora não pretenda entregá-los a minha filha, pelo menos enquanto ela não tiver idade para uma análise mais crítica - têm conteúdo contestável, e ponto. O que acho que não podemos negar é o legado que Lobato deixou à literatura infantil brasileira - vamos dar a César o que é de César.
bjs
Paloma, outra coisa: dentre os famosos a defender Lobato, Ziraldo foi uns do mais destacados. Tem uma carta aberta da mesma Ana Maria Gonçalves para ele: http://www.idelberavelar.com/archives/2011/02/carta_aberta_ao_ziraldo_por_ana_maria_goncalves.php
ResponderExcluirMas, sabe, acho que não vale a pena ficar procurando para quem apontar o dedo. Flicts é lindo e inclusivo, minha filha adora, mas não quero apresentá-la a Marrom. Pretendo, com calma, ir lendo os livros de Lobato para ir sabendo quando e se liberar para ela, como faço com todos os outros livros. Sei lá se estou certa, mas sabe, estou tentando de verdade...
bjs