22 novembro 2019

Malévola e o poder das sombras

Vou, com esse post, retomar a sessão O que os cachinhos assistem, que acabou sendo tão pouco usada. Sim, no cabeçalho do blog temos as sessões O que os cachinhos leemO que cachinhosouvemO que os cachinhos assistemO que os cachinhos curtem, possibilitando que eu traga percepções sobre obras escritas, cantadas, filmadas e o que mais nos movimentar.


Tenho que admitir que Malévola mexe muito comigo. Ainda lembro do dia que decidi assistir seu primeiro filme. Estava indo para o trabalho e vi um outdoor no caminho com aquela foto impactante de Angelina Jolie com chifres e um olhar perturbador. Não tinha a menor ideia do que se tratava, mas arrastei o marido ao cinema naquele mesmo dia. Foi já assistindo o filme que me dei conta que a protagonista era a fada má que amaldiçoa a Bela Adormecida.

Adoro quando um personagem de ficção faz isso comigo. Acho a história do filme interessante, de fato, mas é ela, Malévola, quem rouba toda a minha atenção. Os fatos e personagens só dão os contornos necessários para que ela se mostre. E isso acontece, claro, porque rola comigo uma identificação clara e imediata com essa figura tão controversa quanto encantadora.

Como Malévola se deixa tomar por seus instintos mais perversos e traz a tona pela primeira vez toda a sombra que há em si. E como Malévola, apesar de toda a dor e mágoa, se permite, no seu íntimo, fazer o amor renascer. No segundo filme, o claro dilema entre o bem e o mal, a luz e a sombra, encarnado dentro da mesma personagem, fica ainda mais forte. Malévola me traz a difícil lembrança de que somos, cada um de nós, o encontro dessas duas poderosas forças. E que fugir ou esconder essa realidade, por mais dolorosa que seja, só causa mais sofrimento e dor.


Há algum tempo ouvi no canal de Rossandro Klinjey sobre quanta energia gastamos para esconder de nós mesmos as nossas sombras. Energia que nos falta para agir positivamente sobre elas. Energia que podia ser usada para encará-las com serenidade, com acolhimento, com autoaceitação. Perceba que isso é mais do que reconhecer-se imperfeito, assumir defeitos. Minha inveja, meu ciúme, minha mesquinharia, meu egoísmo (e vou parar por aqui para não assustar ninguém)... são parte do que sou, ajudam a estruturar meu eu, e se podem me colocar em atitudes reprováveis, podem também me movimentar para atitudes positivas e amorosas – comigo mesma ou na relação com os demais.

Porque nossas sombras são forças poderosas, assim como as de Malévola, que podem destruir, amaldiçoar e ferir profundamente - e escondê-las só potencializa seu poder destrutivo. Mas quando são levadas à luz, olhadas e acolhidas, podem ser usadas para construir e prosperar. Só quando você se olha como um todo, como sombra e luz, é capaz de fazer o exercício que Malévola é levada ao final do filme: “nunca esquecer quem você é”.


Desse ponto em diante esse texto traz alguns spoilers sobre o segundo filme, Malévola: Dona do Mal. Se não assistiu o filme ainda, talvez seja melhor não avançar com a leitura.

No segundo filme, identifico a simbologia dessas questões claramente no momento em que Malévola é levada a esconder quem é, suas origens e suas sombras, e se mostrar como os outros (os humanos) esperam que ela seja. Entretanto, é aí que ela é confrontada e tem suas fragilidades expostas com crueldade – fazendo com que suas sombras a dominem e sua reação seja feroz. Para mim, uma clara alusão ao poder nefasto que surge quando as sombras são escondidas.

A partir desse momento, todos, inclusive Aurora, a enxergam apenas por suas sombras. Ela é o mal, a treva, a destruição – e precisa ser aniquilada. Mas a história dá uma reviravolta quando Malévola se reencontra com sua ancestralidade, suas origens. Encontra outros seres alados e de chifres, como ela, percebe de onde vem, entende a origem de muitas de suas sombras. Não é um encontro fácil. Há dor e ressentimentos, e a ideia de vingança parece em alguns momentos ser a única saída.


Reconhecer nossa ancestralidade e a origem das sombras que carregamos, é fundamental no processo de autoconhecimento. É a partir daí que passa a ser possível entender e acolher o nosso verdadeiro EU, e fica muito mais claro escolher o caminho a seguir. Malévola faz sua escolha, e então a transformação pode acontecer. A simbologia desse momento no filme me tocou profundamente, pois utiliza a figura da fênix, o pássaro que ao morrer, queima e ressurge das próprias cinzas.

Há muitos anos, quando ainda estava na faculdade, participei de uma atividade terapêutica e ouvi de um colega do grupo que eu o fazia lembrar a fênix, com meus processos de recomeço e transformação, e isso me marcou profundamente e de maneira muito positiva. Desde aí a figura da fênix sempre me inspira. Ver Malévola, morta pelo ódio que despertou, queimar e ressurgir das cinzas na forma de uma fênix gigante foi para mim o ápice dessa intrigante viagem pela personalidade e conflitos da personagem.

O final do filme, quem assistiu sabe, deixa claro que Malévola constrói um equilíbrio entre suas luzes e sombras, e pode finalmente transitar livremente entre os papéis que escolheu assumir: a mãe da humana Aurora e um ser das trevas.

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